Fonte: Geledés
Não apenas pelo fato da nossa resistência em relação a tudo aquilo que foi imposto pelas sociedades ao longo do tempo, mas, principalmente, pela centralidade que temos ocupado nos processos históricos. Sim! As mulheres de pele escura foram personagens importantes de muita das coisas que têm aconteceram por aqui. Algo que, quando visibilizado, nos ajuda a humanizar a nossa própria vivência e a de nossas ancestrais. De forma que, não fiquemos à procura de heroínas e supermulheres da era colonial ou dos tempos atuais. Informações que tornam mais convidativa e prazerosa o reconhecimento do valor das ações do dia-a-dia, das capacidades de ação e negociação que a nossa população tem utilizado em contextos específicos, com possibilidades e oportunidades muito bem delimitadas ou escassas. Algumas dessas destrezas, ainda sobreviventes, como relíquias, e que têm sido transmitidas em forma de tecnologia de social de geração em geração, dentro de nossas próprias famílias. Como já dizia bell hooks, o fato de a mídia e os currículos escolares não abordarem a profundidade da nossa existência, não significa que as nossas vidas não sejam complexas e sem valia.
As mulheres negras têm ocupado papéis centrais e consolidado ações estratégicas para a sobrevivência da nossa comunidade desde os tempos da escravidão ao pós-abolição. Sejam elas em espaços religiosos, naqueles que envolvem as redes construídas a partir do trabalho ou do cotidiano familiar. Foi sobre a escravizada que, no passado, se construiu a possibilidade da família dentro do cativeiro. Mesmo sendo a minoria entre os trabalhadores forçados durante todo o período escravocrata, foi em torno delas que se estabeleceram as linhagens capazes de atravessarem gerações dentro da plantation. Isso tem a ver um pouco com as heranças da organização social e política de algumas comunidades africanas que herdamos na diáspora. E, também, está relacionado com as configurações dos modos emergentes daquele tempo de se pensar o gênero. Fatores decisivos para as disputas e o surgimento de um número considerável de processos judiciais que pautaram o direito dessas mulheres à guarda das filhas e filhos que nasciam aprisionados pelos ventres cativos, de um decreto que proibiu a separação das famílias nas transações de vendas dos escravizados (Decreto n° 1.695 de 15 de Setembro de 1869) e, de certa maneira, da própria da promulgação da Lei Rio Branco, mais conhecida como “Lei do Ventre Livre” (1871). A mobilização que as mulheres escravizadas geraram em torno dos próprios interesses, impactou, diretamente, o processo da abolição no Brasil, em Cuba e outras regiões das Américas. Por aqui, essas personagens foram as figuras centrais para a formação de uma identidade negra que se opunha à escravidão, pois, além dos motivos já apresentados, elas também foram aquelas que mais acessaram a liberdade via a compra de alforrias desde do século XVIII.
As mulheres escravizadas foram as mais bem sucedidas no acesso às cartas de liberdade e se alforriaram em maior número quando comparadas aos homens. Além de trabalhar no campo e vender os excedentes do que plantavam nas feiras urbanas, as mulheres negras dominavam as ruas das cidades no que dizia respeito ao comércio de alimentos, amuletos, entre outras coisas. O dinheiro que arrecadavam com a venda desses artefatos e das iguarias foram o suficiente para libertar muita gente. Às vezes, elas exerciam duas profissões ou mais, combinando as funções de escravas domésticas ou trabalhadoras do campo com o ofício da lavagem de roupas, da venda no tabuleiro e outros mais.
O comércio foi uma atividade tão rentável para as mulheres negras a ponto de mulheres brancas se incomodarem com as africanas livres que, nos tempos da colônia, tinham dinheiro suficiente para comprar tecidos de boa qualidade e desfilar pelas ruas dos centros urbanos vestidas com seda e, até, com algumas joias. Qualquer semelhança com os tempos de hoje quando uma preta tem um diploma na mão ou consegue comprar uma passagem de avião deve ser mera coincidência… A presença das mulheres de pele escura nesses espaços também esquentou a cabeça dos médicos, engenheiros, arquitetos, gestores públicos e políticos que se empenharam nas reformas urbanas da virada do século XIX para o XX em cidades como Campinas e Rio de Janeiro. Vistas como parte de um “problema sanitário”, eles fizeram de tudo para acabar com a prática da lavagem de roupas nas beiras dos rios e a comercialização de alimentos. A rua foi, cada vez mais, associada a um lugar profano, infecto e de desordem. Desapropriado para a mulher branca. Essa degradação moral da imagem das mulheres negras esteve diretamente atrelada à formação dos padrões socialmente aceitáveis de feminilidade no período.
Ao tocarmos nesse assunto, sempre é importante lembrar que a escravidão não foi a nossa única possibilidade de existência no passado. Geralmente, quando pautamos a experiência negra, o direito à história e à memória, tentam encurralar nossa existência em, aproximadamente, três séculos de trabalho forçado nas Américas. Contudo, muita gente tem lutado para romper os modelos hegemônicos que nos ensinam formas limitadas de ser, nos ver e pensar. Os olhares que mulheres negras têm lançado para o passado estão inspirando novas perspectivas libertadoras de futuro. E, ainda, têm incentivado a pesquisa histórica a ampliar o campo das análises. Trabalhos recentes revelam que muitas das nossas também eram trabalhadoras libertas e “livres” antes mesmo da abolição da escravidão. Outras pesquisas, como a de quem vos fala, tem apontado para a presença das nossas mulheres nas mais diversas profissões do mercado de trabalho das cidades e tentado entender historicamente como fomos aprisionadas no subemprego e encurraladas em profissões pouco valorizadas. Para além de empregadas domésticas, as mulheres negras empobrecidas também foram trabalhadoras de fábricas, doceiras, costureiras e muito astutas, pois sobrevivemos em uma sociedade que nos desejou a morte.
No primeiro dia dos desfiles das escolas de samba do Rio de Janeiro, a Unidos do Viradouro contou um pouco dessa história de forma didática e com muita maestria. Deu uma aula ao narrar um pouco dos caminhos e descaminhos das relações de trabalho no Brasil. Com muita beleza e de um jeito que coube o protagonismo da nossa gente. O samba enredo Viradouro de Alma Lavada trouxe para a Sapucaí a vida das ganhadeiras, das lavadeiras do Abaeté envolvidas pelo zelo da orixá que lava as nossas almas: Oxum.
Mesmo que seja a contragosto, nós existimos e celebramos a nossa trajetória. Aí de quem ousar esconder a nossa história. Seguimos criando, agindo e desviando dos estereótipos que poucos nos ajudam a entender as relações de raça e gênero desse lado do atlântico. E, de alma lavada, seguimos transgredindo o modo de nos ver e sermos vistas.
Referências:
hooks, bell. Olhares negros: raça e representação. São Paulo: Elefante, 2019.
COWLING, Camilia. Concebendo a liberdade: mulheres de cor, gênero e a abolição da escravidão nas cidades de Havana e Rio de Janeiro. Campinas: Editora da Unicamp: 2018.
FARIAS, Sheila Siqueira de Castro. Sinhás Pretas, damas mercadoras: as pretas minas nas cidades do Rio de Janeiro e de São João Del Rei. Tese (Concurso para professora titular em História). Universidade Federal Fluminense, 2004.
LARA, Silvia. Fragmentos setecentistas: cultura, escravidão e poder na América Portuguesa. São Paulo: Companhia das Letras, 2007.
MATTOS, Hebe. Das cores do silêncio: os significados da liberdade no Sudeste escravista (Brasil, século XIX). Campinas, SP: Editora da Unicamp, 2013.
G.R.E.S UNIDOS DO VIRADOURO. Viradouro de Alma Lavada – Samba Enredo 2020.
Taina Aparecida Silva Santos É historiadora e mestranda em História Social pela Unicamp. Pesquisa a história do racismo e da racialização com a intenção de compreender um pouco mais sobre as relações de gênero e trabalho no final do século XIX. É ativista do movimento negro e de mulheres negras.