por Paulo Nogueira Batista Jr, no Portal Carta Capital
Na minha família, como em milhões de outras, os chats de WhatsApp viraram palco de conflitos políticos acirrados. Estou em minoria, e as minhas provocações são recebidas com profundo desprazer. Outro dia soube de um fato desabonador: criaram um novo chatfamiliar do qual fui sumariamente excluído! Explicaram-me que o grupo é principalmente para trocar fotos de “crianças lindas e amadas”.
Ora, na situação em que se encontra o Brasil, simplesmente trocar fotos de “crianças lindas e amadas” é uma atividade comprometedora, quase irresponsável. É preciso ter muita “saúde” para isolar-se da crise e viver, tranquilo e impune, numa torrezinha de marfim qualquer.
Paro e releio o parágrafo que escrevi. Não quero, leitor, tentar escrever uma página de Tchecov em que a classe média brasileira – logo quem! – seria instada a se comportar, de repente, como os personagens angustiados das peças do grande dramaturgo. Crises existenciais e de consciência nunca foram o nosso forte. Prefiro outra faceta de Tchecov: suas observações sobre a superação da servidão na Rússia. Lembro-me, em especial, de uma carta que ele enviou a outro escritor russo com a seguinte exortação:
“Escreva um conto sobre um jovem, filho de servos, antigo vendedor de armazém, corista de igreja, ginasiano e depois universitário, que foi educado para respeitar a hierarquia e para acatar as ideias alheias, que agradecia cada pedaço de pão, que foi muitas vezes açoitado, (...) que era hipócrita diante de Deus e dos homens, sem nenhuma necessidade, simplesmente por ter consciência de sua própria insignificância; escreva como esse jovem espreme, gota a gota, o escravo que tem dentro de si, e como ele, ao acordar numa bela manhã, sente que em suas veias já não corre mais o sangue do escravo, e sim o de um verdadeiro homem."
Superar a servidão ou a escravidão é processo longo, doloroso. A escravidão no Brasil foi legalmente abolida em 1888, mas os seus traços e traumas perduram até hoje.
No Carnaval carioca deste ano, a Paraíso do Tuiuti apresentou lindo samba-enredo, uma obra de arte, letra e música, com o seguinte título: Meu Deus, Meu Deus, Está Extinta a Escravidão? Ninguém estranhou o ponto de interrogação, mesmo após 130 anos da Lei Áurea.
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Não deixe de escutar esse samba-enredo, leitor. É um exemplo magnífico da criatividade do povo brasileiro. Tanto a música quanto a letra jorram beleza. É um tipo de beleza que transcende o momento em que foi criada. Mas o que a valoriza ainda mais é a sua conexão com o momento dramático que vivem o Brasil e o povo brasileiro.
O refrão, cantado logo no início, dá um tom de liberdade orgulhosa: “Não sou escravo de nenhum senhor/Meu Paraíso é o meu bastião/A Tuiuti é o quilombo da favela/A sentinela da libertação”.
No contexto do samba-enredo, o refrão é um misto de realidade e aspiração, talvez com mais peso da segunda do que da primeira. Segue-se então um belo panorama da história da escravidão africana no Brasil: Fui mandinga, cambinda, haussá/Fui um Rei Egbá preso na corrente/ Sofri nos braços de um capataz/Morri nos canaviais/Onde se plantava gente/ Ê, Calunga, ê! Ê, Calunga!/Preto velho me contou, preto velho me contou/Onde mora a senhora liberdade/ Não tem ferro nem feitor.
Quando chega o momento de relembrar a Lei Áurea, a música e o canto ascendem de maneira emocionante: E assim quando a lei foi assinada/Uma lua atordoada/Assistiu fogos no céu/Áurea feito o ouro da bandeira/Fui rezar na cachoeira/Contra a bondade cruel.
No desfile na Sapucaí, o tripé que trazia a reprodução da Lei Áurea foi seguido de várias alas representando a continuação da escravidão no Brasil sob outras formas: o trabalho precário, a escravidão disfarçada no meio rural, os vendedores ambulantes etc.
Na versão que prefiro, o samba-enredo começa devagar, a capela, como um lamento: “Meu Deus, meu Deus, se eu chorar não leve a mal/Pela luz do candeeiro/Liberte o cativeiro social”. E termina com o grito de guerra de um dos puxadores do samba, logo após o fim da música: “A luta continua, meu povo!”
P.S.: A ala dos “manifestoches” retratou com pesado sarcasmo aqueles que bateram panelas e foram às ruas em 2016 e agora enfiam a cabeça na areia e trocam fotos de “crianças lindas e amadas”.