Fonte: HuffpostBrasil
A América Latina é a região do mundo com maior número de abortos proporcionalmente. São 44 a cada mil mulheres por ano, enquanto a média global é de 35 a cada mil mulheres. Além da maior frequência, a região também registra a maior proporção de interrupções de gravidez feitas de forma insegura. São 76% do total. Os dados são do estudo "Abortion Worldwide 2017 - Uneven Progress and Unequal Access" (Aborto no Mundo 2017: Progresso Desigual e Acesso Desigual, em tradução livre), do Instituto GuttMacher, instituição que atua globalmente pelos direitos reprodutivos.
Apesar da frequência, apenas 3 países na América do Sul e Central permitem a interrupção da gravidez independentemente do motivo: Guiana, Uruguai, Cuba. O aborto também é liberado sem restrições até a 12ª semana da gestação em Porto Rico, território norte-americano no Caribe, e na Cidade do México.
Até 2017, em 7 países latinos o aborto não era permitido em nenhuma circunstância. A legislação foi flexibilizada no Chile no ano passado, mas o procedimento segue proibido por qualquer motivo em El Salvador, Haiti, Honduras, Nicarágua, República Dominicana e Suriname.
Nos outros países da região, a interrupção voluntária da gravidez ainda é criminalizada, mas pode ser realizada em alguns casos específicos, como risco de vida , estupro e anomalia fetal. Paraguai, Venezuela, Antigua e Barbuda, Guatemala e Dominica só permitem o procedimento caso haja risco de morte para a gestante.
No restante, as outras exceções também se aplicam, com algumas variações menos ou mais restritivas. As regras colombianas, por exemplo, são mais flexíveis do que as brasileiras, pois levam em consideração também a proteção da saúde física e mental da mãe. Aqui, a legalidade é limitada a casos de estupro, risco de vida da mãe ou feto anencéfalo.
O debate para ampliar a legalização do aborto ocorre atualmente na Argentina e no Brasil. Nos dias 3 e 6 de agosto, o STF (Supremo Tribunal Federal) promoveu audiências públicas para debater a ADPF (arguição de descumprimento de preceito fundamental) 442, que pede a descriminalização do aborto até a 12ª semanas. A ação foi proposta em março de 2017 pelo PSol em conjunto com o Anis - Instituto de Bioética. No dia 8, o Senado argentino votará a lei aprovada na Câmara dos Deputados em junho, que permite a interrupção sem restrição de motivo até a 14ª semana de gravidez.
Em praticamente todos os países onde o aborto é legal na América Latina se pode escolher o tipo de procedimento, de acordo com organizações que auxiliam brasileiras nesta área. Geralmente até as 9 semanas se recomenda o uso de pílulas e após esse período, algum tipo de cirurgia.
No Uruguai, é preciso ser residente por no mínimo 2 anos para ter acesso ao aborto legal, mas as regras são mais flexíveis para estrangeiras em outros países. De acordo com essas organizações, na Guiana e na cidade do México muitos profissionais falam português pela alta demanda de brasileiras e em hospitais públicos mexicanos o processo é gratuito mesmo para quem não mora em território nacional.
A Colômbia também está se tornando uma referência. Após ter o pedido de aborto legal negado pelo STF, a paulistana Rebecca Mendes fez o procedimento em Bogotá. Em 2006, o Tribunal Constitucional colombiano descriminalizou o procedimento em caso de estupro, risco para saúde da mãe e quando não é possível que o feto viva fora do útero.
Desde então, outros avanços foram consolidados pelo sistema judiciário e hoje uma mulher pode abortar no país também se a gravidez representar um abalo a seu estado de saúde mental. "Uma colombiana que deseje abortar porque se sente ansiosa ou deprimida com a gravidez necessita apenas dizer isso para o médico ou psicólogo que a atender. Nenhum deles poderá lhe pedir um laudo psiquiátrico ou algo do gênero", afirmou à revista piauí Luz Janeth Forero, gerente de projetos e investigações da ONG Profamilia, instituição referência para realização de abortos legais na Colômbia, que atendeu a Rebecca no ano passado. Em 2017, a organização fez 10.517 procedimentos.
A atuação da ONG ganhou espaço com apoio de instituições internacionais, em um período de redução da taxa de natalidade no país. O procedimento também é feito na rede pública. Quanto à saúde das mulheres, a mortalidade materna das colombianas foi de 53,7 a cada 100 mil nascidos vivos em 2015, segundo dados do Observatório de Igualdade de Gênero da Cepal (Comissão Econômica para a América Latina e o Caribe). A média da América Latina, por sua vez, foi de 47,8 para cada 100 mil nascidos vivos, no levantamento que considera os dados informados pelos governos federais. O indicador no Brasil, por sua vez, foi de 59,9 a cada 100 mil nascidos vivos.
A Guiana foi o primeiro país sulamericano a iniciar a discussão da descriminalização, em 1971, após o Reino Unido aprovar o Abortion Act, em 1967. A mudança legal, contudo, só ocorreu em 1995. Hoje a interrupção da gravidez é permitida até a 8ª semana da gravidez, sem restrição de motivo e por medicamento. Se for feito sem intervenção cirúrgica, não é preciso ir até uma instituição autorizada.
Também é permitido até a 16ª semana se houver risco grave para a vida e saúde mental e física da mulher, estupro, HIV ou falha no uso de método contraceptivo dela e do parceiro. Nesse período, é preciso de autorização médica. Se a gestação estiver mais avançada, ela só pode ser interrompida para salvar a vida ou proteger a saúde mental e física da mulher e também precisa de aval médico.
Porém, depois de mais de 20 anos da aprovação da legislação mais liberal, pouco foi feito para efetivamente promover o acesso ao aborto seguro em instituições públicas de saúde, analisa o pesquisador Frederick Nunes, no artigo "Legal, mas inacessível: o aborto na Guiana". A oferta do serviço de saúde é feita por organizações civis e, ilegalmente, por clínicas clandestinas. O país continua tendo uma das maiores taxas de mortalidade materna da região. A razão era de 116,6 a cada 100 mil nascidos vivos em 2015.
Em Cuba, a interrupção da gravidez é legalizada desde 1968. Nos primeiros anos da revolução, entre 1959 e 1964, a legislação era mais restrita. A criminalização, junto com a emigração e o alto número de médicos no país aumentou o índice de mortalidade materna e contribuiu para a legalização.
Hoje o aborto é permitido até a 12ª semana sem exigência de motivo. Após esse período, há variações. Gestação provocada por estupro pode ser interrompida até a 22ª semana, por exemplo. Em todos os casos, é necessário um diagnóstico e uma declaração escrita do consentimento da mulher.
Em 2017, foram registrados 83.904 abortos. Ainda segundo dados do governo, os métodos contraceptivos alcançam 77,1% da população. A taxa de mortalidade materna foi de 41,9 a cada 100 mil nascidos vivos naquele ano, sendo apenas 2,6 por aborto induzido ou não. O número total de interrupções é menor do que no passado e quase a metade do que foi registrado em 1986, quando foram realizados 160.926 abortos no país.
Também na América Latina, Porto Rico, território não incorporado dos Estados Unidos, permite a interrupção da gravidez sem restrição de causa até a 12ª semana. O atendimento é feito basicamente em clínicas particulares. O local tem uma das menores taxas de mortalidade materna da região. O índice foi de 28,8 a cada 100 mil nascidos vivos em 2015.
A lei uruguaia, aprovada em 2012, autoriza que qualquer mulher aborte até a 12ª semana de gestação. Em casos de estupro, o prazo é até a 14ª semana, e não há limite de tempo quando a gestante corre risco de morte ou em caso de má formação do feto.
A aprovação foi resultado de um processo histórico de mobilização de diversos setores. "Há quase uma década, movimentos sociais, organizações médicas e acadêmicos defendem o que ficou internacionalmente conhecido como 'modelo uruguaio de redução de danos'. O aborto era proibido no Uruguai, mas o acesso à informação, um direito fundamental. Médicos e enfermeiras eram proibidos de auxiliar mulheres a abortar de maneira segura, mas se sentiam no dever de informá-las sobre riscos e seguranças de cada método", de acordo com artigo da antropóloga Debora Diniz.
Em 2016, foram realizados 9.719 abortos no país, 26 por dia. No ano seguinte a legalização, 2013, foram 7.171. Neste período, nenhuma morte foi registrada nos procedimentos legais e 3 foram contabilizadas com consequências de interrupções clandestinas. A razão de mortalidade materna foi para 19,1 a cada 100 mil nascidos vivos em 2015, 3ª mais baixa da região. Estudos da ONG Mujer y Salud en Uruguay (MYSU) estimam que antes de 2012, eram feitos entre 16,3 mil e 33 mil abortos por ano no país.
A diferença entre as estimativas e os números oficiais são evidência de que o aborto clandestino continua. Um dos fatores que explica esse fenômeno é o grande número de profissionais que alegam objeção de consciência para não realizar o procedimento. Nas áreas mais afastadas do oeste e norte do país, entre 60% e 80% dos profissionais na área de ginecologia se recusam a fazer o procedimento, segundo a MYSU.
Além disso, há diversas etapas no sistema de saúde. É necessária consulta com médico, ecografia, equipe com ginecologista, psicólogo e assistente social. Depois a mulher passa por 5 dias de período de reflexão. Em 2016, 6% das mulheres que procuraram o serviço desistiram de abortar.
Em 2007, dois terços da assembleia legislativa da Cidade do México aprovaram uma mudança no código penal para permitir o aborto nas 12 primeiras semanas da gestação sem restrição de motivo. No ano seguinte, a Suprema Corte mexicana confirmou a constitucionalidade da lei. Até então, a interrupção da gravidez só era permitida em caso de risco de vida, estupro e má formação fetal. A legislação mais liberal só contempla o distrito federal da Cidade do México.
Ao longo dos anos, outros estados com leis bastante restritivas adicionaram algumas exceções para permitir ou não penalizar o aborto em determinadas situações. Por outro lado, em reação à mudança na capital federal, outros estados mexicanos mudaram suas constituições para incluir a proteção do direito à vida antes do nascimento. Embora essas alterações não interfiram diretamente a legalidade do aborto, de acordo com o Center for Reproductive Rights, elas contribuem para um cenário de maiores restrições no futuro.
De acordo com dados de organizações que auxiliam mulheres a terem acesso ao aborto legal, 36% das mulheres que recorrem a procedimentos clandestinos no México precisam de atendimento médico. Neste grupo, contudo, 25% não chega aos hospitais. O percentual chega a 45% entre moradoras do campo. O número cai para 0,68% entre as que moram na capital. Entre 2007 e 2016, foram feitos 164.954 procedimentos legais no distrito.
Desde 1989, o aborto era proibido no Chile em qualquer situação. O cenário mudou em agosto de 2017, quando o Congresso chileno aprovou uma lei que legaliza o procedimento em caso de estupro, inviabilidade do feto e perigo de vida para a mãe. A decisão foi validada posteriormente pelo Tribunal Constitucional chileno.
Desde a campanha presidencial de 2013, a candidata da coalizão de esquerda, Michelle Bachelet, médica de formação, havia prometido a descriminalização. Após a mudança, ela declarou que as mulheres recuperaram "um direito básico que nunca deveríamos ter perdido: decidir quando vivemos momentos de dor". O processo foi marcado por uma forte mobilização dos movimento feministas.
Apesar da ilegalidade, as estimativas eram de 70 mil abortos por ano no Chile, antes da alteração. Por outro lado, 497 pessoas foram condenadas por aborto consentido entre 2010 e 2014, de acordo com a ONG Miles Chile. Do total, 86% eram mulheres e 14%, homens. Por outro lado, a razão de mortalidade materna é a menor na região, de 15,5 a cada 100 mil nascidos vivos, no ranking que considera dados informados pelos próprios países.
Também no ano passado, deputados e senadores bolivianos aprovaram uma mudança no código penal para ampliar o acesso ao aborto induzido e voluntário. Além de ser permitida em casos de estupro, incesto e risco de morte da gestante, a nova legislação permitiria a interrupção da gravidez caso ela pudesse colocar em risco a vida ou saúde da mãe no presente ou no futuro, caso a pessoa gestante fosse uma criança, adolescente ou estudante ou caso já fosse responsável pelo cuidado de outras pessoas.
Porém, em resposta a críticas e protestos contra outras mudanças feitas no código penal, não somente relacionadas a legalização do aborto mas à liberdade religiosa e de imprensa, o presidente Evo Morales vetou o texto completo da nova legislação em janeiro deste ano. A expectativa é que a discussão seja retomada. Segundo a Ipas, organização internacional que atua pelos direitos reprodutivos na Bolívia, 185 mulheres fazem abortos clandestinos, em sua maioria inseguros, todos os dias no país.
Na Argentina, também são as mulheres nas ruas que pressionam pelo avanço dos direitos reprodutivos. Em junho, a Câmara dos Deputados argentina aprovou um projeto de lei que descriminaliza o aborto até a 14ª semana de gestação. A previsão é que o texto seja votado no Senado em 8 de agosto.
A proposta votada foi apresentada pela Campanha Nacional pelo Direito ao Aborto Legal, Seguro e Gratuito, movimento que reúne mulheres argentinas desde 2003. O lema é "educação sexual para decidir, anticonceptivos para não abortar e aborto legal para não morrer".
Entre 2006 e 2016, houve 3.314 mortes maternas na Argentina, de acordo com dados do Ministério da Saúde local. Desse total, 681 mulheres morreram em decorrência de abortos, mas não é possível saber se as interrupções foram voluntárias ou não.
Já de acordo com estimativas das Socorristas en Red, ativistas que auxiliam mulheres a realizar abortos seguros com medicamentos, em 2017, quase 5 mil argentinas fizeram o procedimento de forma clandestina. Segundo dados da Cepal, a razão de mortalidade materna é de 38,7 a cada 100 mil nascidos vivos.
Com legislação semelhante à do Brasil, atualmente na Argentina é permitido interromper a gravidez apenas em casos de estupro e risco para a vida ou a saúde da mãe. Os procedimentos são realizados pelo sistema público de saúde.