As prisões no Brasil estão dominadas por facções, segundo Camila Nunes Dias, professora da Universidade Federal do ABC e pesquisadora do Núcleo de Estudos da Violência da Universidade de São Paulo. Não se trata de uma questão específica do Amazonas, onde nesta segunda-feira (2), 56 presos foram mortos em rebelião que durou cerca de 17 horas, no Complexo Penitenciário Anísio Jobim (Compaj), em Manaus. “É uma situação estrutural das prisões brasileiras”, explica.
Na entrevista concedida à Fórum, Camila destaca que o que aconteceu no Compaj derruba o argumento de que o sistema privado de gestão das penitenciárias é mais eficiente. “É uma falácia. O problema da prisão é a própria prisão”, diz ela, que é autora do livro PCC: Hegemonia nas prisões e monopólio da violência.
Revista Fórum – O que o massacre no Complexo Penitenciário em Manaus nos revela?
Camila Nunes Dias – Em primeiro lugar, não diria que ele revela alguma coisa nova, porque todas as questões que estão sendo discutidas agora já eram conhecidas antes deste acontecimento. Conhecidas por muitos pesquisadores e pelas autoridades estaduais e do governo federal. O massacre do Compaj explicita e traz à público algumas questões importantes sobre a realidade das prisões no Brasil.
Dentre as várias discussões, acho que uma questão central é mostrar aquilo que temos falado com insistência: o cotidiano das prisões é gerido pelos presos e não pelo poder público. Por isso, quando as condições indicam que é o momento favorável e oportuno (o que depende de uma multiplicidade de fatores internos e externos à própria unidade prisional) os presos têm capacidade de fazer o que fizeram e o Estado não tem condições de evitar. Não tem condições, é importante frisar, porque não tem interesse.
A discussão teórica de Michel Foucault sobre a atuação do Estado no que ele chama de “biopolítica” e que tem como uma de suas dimensões o não matar (diretamente), mas, o “deixar morrer” é importante para compreender as condições das prisões e os massacres que nelas ocorrem.
A política do “deixar morrer” alguns segmentos da população, notadamente os pobres e negros, se expressa em algumas manifestações de autoridades, como, por exemplo, na fala do governador do Amazonas dizendo que não havia “santo” entre os mortos e, em 2012, na célebre resposta a uma chacina cometida pela polícia militar paulista, que matou 9 pessoas, quando o governador de São Paulo Geraldo Alckmin disse que “quem não reagiu está vivo”.
Revista Fórum – O massacre está sendo explicado como fruto da disputa de facções, que comandavam a unidade, por que se chegou a esse ponto nas penitenciárias?
Camila Nunes Dias – Essa questão é importante para complementar a anterior e situar todo o problema das chamadas “facções”. É verdade que há um cenário de disputas e conflitos entre os diversos grupos existentes nas prisões brasileiras e que essas disputas têm provocado ocorrências como a de Manaus.
Contudo, a existência das facções – e, portanto, os conflitos entre esses grupos – é, em si, um efeito e não a causa. É justamente a política de encarceramento em massa adotada pelos estados brasileiros (alguns com maior intensidade que outros, destacando-se o caso de São Paulo que tem 1/3 da população carcerária nacional) nas últimas três décadas a força motriz por trás do cenário trágico das prisões brasileiras.
O encarceramento massivo intensifica as condições degradantes e aviltantes que são características das prisões brasileiras. A superlotação e a precariedade das condições prisionais – em todos os sentidos, desde as instalações físicas, até os serviços de alimentação, bens e serviços básicos, a falta de funcionários – são o contexto no interior do qual surgem, crescem e se consolidam esses grupos que, conforme mencionado antes, passam a governar a população encarcerada.
Esse governo dos presos pelos presos é bastante conveniente para o Estado, pois, permite a manutenção do encarceramento a custos muito mais baixos. Por isso, quando o governo dos presos pelas facções ou comandos é feito silenciosamente, sem a explicitação dos conflitos que ocorrem dentro das prisões, ninguém toca no assunto. Finge-se que está tudo controlado. Mas, não está. Esta situação não é específica de uma prisão ou de um estado – como algumas autoridades tentam fazer crer em razão de interesses políticos-eleitorais. É uma situação estrutural das prisões brasileiras. O que precisa ficar claro é que a prisão é o problema.
Revista Fórum – Relatório feito pelo Mecanismo Nacional de Prevenção e Combate à Tortura Ministério da Justiça, no final de 2015, após vistoria no Compaj, apontava uma situação explosiva, de disputas, com superlotação e celas-cativeiro, etc. As prisões são bombas a explodir? Esse é um quadro nacional?
Camila Nunes Dias – Falando no relatório do Mecanismo, é necessário perguntar: o que o governo estadual e o governo federal fizeram diante da descrição de um cenário que já antecipava a tragédia? Por que presos apontados como lideranças do grupo Família do Norte foram transferidos de volta para o Estado do Amazonas, mesmo com esse cenário já devidamente conhecido? Por que os presos vinculados ao PCC permaneceram no seguro do presídio controlado pela FDN? Como entraram tantas armas, inclusive várias armas de fogo? Quem permitiu a entrada dessas armas e como elas foram parar nas mãos dos presos ligados à FDN? Quais os interesses no que ocorreu no Amazonas e quem ganha e quem perde com a eventual eliminação do PCC e hegemonia da FDN no Estado? Para muito além dos presos, é necessário perguntar, pois, quem e o quê estão por trás de tudo isso.
E, sim: é um quadro nacional. Com a ruptura entre o CV e o PCC houve um alinhamento quase que binário nas prisões brasileiras, a um ou a outro grupo. E, com isso, um posicionamento dos presos em função do grupo hegemônico no Estado. Exemplificando: nos estados em que o PCC tem hegemonia (é o caso de São Paulo, Paraná, Mato Grosso do Sul) os presos dos grupos rivais – CV, FDN, PGC – estão no seguro; nos estados em que FDN, CV, PGC (os principais grupos de oposição ao PCC) são maioria, os presos do PCC estão no seguro (caso de Santa Catarina, Mato Grosso, Tocantins, Amazonas).
Em outros estados, como Ceará, Bahia, Rio Grande do Norte há mais equilíbrio entre CV-PCC e maior fragmentação, e por isso, não me arriscaria a apontar quem tem maioria. Enfim, seja lá como for, o caso é que as relações de poder dentro das prisões brasileiras, deixadas a si mesmo, num sistema de autogoverno, acabaram se polarizando. Isso, evidentemente, tensiona enormemente todo o sistema uma vez que os “seguros” – conforme ficou evidenciado no caso do Compaj – não tem nada de “seguro”: são espaços extremamente precários que podem ser facilmente acessados pelos presos em relação aos quais os indivíduos do seguro devem permanecer apartados.
Revista Fórum – O Compaj era privatizado, assim como muitas outras unidades pelo país. Quais são os efeitos desse processo de privatização para o sistema prisional?
Camila Nunes Dias – Essa é uma questão fundamental e que em razão de interesses muito poderosos, tem sido pouco abordada neste debate. Há muitos anos ouvimos que para solucionar o caos do sistema prisional é necessário “privatizar” as prisões. Sabemos que o lobby da privatização é fortíssimo e por isso, penso eu, pouco se fala nisso.
É preciso lembrar que a prisão que foi palco de massacre há poucos anos atrás, o complexo de Pedrinhas, no Maranhão, igualmente, tem parte da sua administração privatizada. Há muitos modelos de privatização e um relatório feito pela Pastoral Carcerária em 2014 aponta as fragilidades e os problemas desses modelos. A defesa da privatização dos espaços prisionais decorre ou da falta de conhecimento sobre o tema – e temos muitos “especialistas” que repetem fórmulas abstratas e genéricas sem ter qualquer contato com a realidade empírica em que se aplicará tais fórmulas – ou, então, a defesa se explica pela má fé e por interesses próprios na mercantilização da liberdade de indivíduos pobres e negros que compõem a população carcerária brasileira.
O modelo de privatização que é construído como “exemplo” de eficiência, o da penitenciária de Ribeirão das Neves em MG, ele só pode existir enquanto exceção: ou seja, ele nunca será universalizável e só funciona se existirem outras tantas unidades prisionais que seguem o padrão brasileiro: precárias, superlotadas, insalubres, degradantes, desumanas.
Tanto em razão de questões econômicas (o custo muito mais alto) quanto por questões operacionais (o perfil dos presos), esse modelo será sempre uma exceção já que ele prevê a não existência de superlotação e uma série de outras questões que envolvem o trabalho, por exemplo, que são impossíveis de serem universalizadas. Isso para não falar do aspecto sinistro e imoral que é o de adotar a lógica de mercado para tratar das pessoas privadas de liberdade, ou seja, fazer da liberdade humana uma mercadoria como outra qualquer e que é a lógica presente na ideia de privatização.
Para além de todas essas questões de fundo, porém, o que o evento do Compaj traz é a definitiva derrubada do argumento da eficiência do sistema privado de gestão em relação ao público. É uma falácia. O problema da prisão é a própria prisão. São as condições de encarceramento que produzem os efeitos que temos assistido de tempos em tempos no Brasil através de cenas grotescas de barbárie.
Contudo, não podemos esquecer que os principais responsáveis por tais barbáries estão fora das prisões: eles estão nos tribunais assinando sentenças de mortes para indivíduos que são condenados ao regime fechado por crimes sem violência; eles estão em cargos políticos insuflando a ideia “política de segurança pública” baseada no punitivismo através de propostas que representam um retrocesso de décadas, como pode ser notado nas falas do atual Ministro da Justiça, especialmente, em seus discursos e imagens vinculadas à já combalida e mais do que fracassada “guerra às drogas”.
É repugnante ver essas pessoas, que buscam incessantemente os holofotes, virem à público diante dos cadáveres produzidos em Manaus e apresentarem “soluções” mágicas – recursos para construção de presídios e transferência para o sistema penitenciário federal – que na prática agravam os problemas que supostamente pretende resolver. Não passa de um discurso vazio e raso – esse último termo, aliás, que o Ministério da Justiça utiliza para lidar com as críticas às suas propostas.
Fonte: Revista Fórum