Escrito por João G. Santos
Sessenta e dois anos separam a inauguração de Brasília e a abertura da 22º edição da Copa do Mundo de futebol masculino da FIFA, sediada em 2022, no Qatar. Claro, não só o lugar no tempo e espaço diferenciam estas duas ocasiões históricas: acrescentemos o contexto geopolítico, o caráter, os atores e os interesses envoltos a cada uma. O que sobra, então, como conectivo entre ambas? Para além do fato de que o emirado agora possui a sua própria cidade-modelo (Lusail), erguida no ermo da península, sob a cartilha das últimas tendências urbanas e tecnológicas – à semelhança do vanguardismo do Distrito Federal do Brasil à época da sua construção, em certa medida –, o elo inextricável entre as duas cerimônias está nos canteiros que materializaram as arquiteturas a comportá-las.
Foi com base na sistematização de abusos físicos e psicológicos perpetrados contra os corpos de milhares de colaboradores que se plasmou o conjunto construído de um lugar e de outro. O estado-da-arte da engenharia high-tech, propagandeada pelo governo árabe como declaração de uma nova era, se dá com comprovado sofrimento humano. Décadas antes e mais de 11 mil quilômetros distante, a intenção de refundar o ideário de um país pela régua da racionalidade modernista exigiu sacrifícios equivalentes. Episódios nos quais o Estado abriu incontornáveis concessões para afirmar o seu progresso, nem que pra isso houvesse a naturalização de violações de direitos humanos e trabalhistas.
Em meio à busca por um protagonismo global inédito, o governo qatari investiu bilhões de dólares desde 2010 (quando conquista a posição de país-sede) para acelerar o seu desenvolvimento construtivo, no encalço do fenômeno urbanístico do vizinho Emirados Árabes Unidos (UAE). Tal sanha por estabelecer, em tempo recorde, um skyline exuberante assinado pelos maiores nomes da indústria, exigiu um alto custo para o contingente operário que compunha o escalão mais baixo das equipes de obra. Diferentes observadores internacionais atestaram, ao longo dos últimos anos, que houve repetidos excessos na execução dos projetos arquitetônicos e de infraestrutura, com imposição de jornadas de 12h ininterruptas, retenção ilegal de documentos, alojamentos insalubres, entre outros descalabros.
Al Rayyan Stadium (Pattern Design/Ramboll Ingenieure)
Segundo parecer da Organização Mundial do Trabalho, emitido em 2021, 50 contratados morreram e mais de 500 sofreram ferimentos críticos apenas naquele ano em ocorrências ligadas diretamente às construções da copa. Algumas das alegações foram admitidas e suavizadas pelas autoridades locais, numa forma de contemporizar a situação frente à opinião pública externa e preservar a imagem da organização da competição. Ambet Yulson, Secretário-Geral da Global Union Federation Building and Wood Workers' International (BWI), participou de 25 inspeções nos canteiros do país, e classificou em 2022 como “escravidão moderna” a relação laboral a qual estava submetida grande parcela dos trabalhadores que construíam as arenas e demais equipamentos.
O Qatar proíbe sindicalização, greves ou protestos. Logo, sem recursos para articular demandas coletivas por melhores condições, este grupo de indivíduos precarizados se submetia a regimes diuturnos de esforço, a ponto de colocar em risco a sua integridade física. Em paralelo, também se endividava com seus superiores por conta das taxas de recrutamento, anulando a sua autonomia até quitar o débito. Era formado, em grande parte, por operários provenientes do Golfo Pérsico, África Subsaariana e Sul da Ásia. A imigração em massa motivada pela abertura de novos postos, aliás, é outro fator comum nos dois exemplos comparados nesse artigo, embora, no caso brasileiro, tenha acontecido um êxodo estritamente doméstico.
A realização da capital brasileira, nascida de dois eixos cruzados em ângulo reto e monumentalizada pelas pranchetas de Oscar Niemeyer, foi um verdadeiro desafio de logística para o Brasil, tendo em vista o estágio incipiente de modernização em que se encontrava. Em virtude do nível de desenvolvimento da região Centro-Oeste em meados do século XX, ainda desprovida de malha viária adequada, o custo de transporte de matéria-prima e de operários foi bastante elevado àquela altura. A mão-de-obra necessária para atender ao escopo de trabalho num lugar até então desabitado precisou vir de outras cidades próximas e de Estados como Bahia e Minas Gerais. Os barracões os quais abrigava os candangos, como ficaram conhecidos pejorativamente estes viajantes, eram acomodações precárias e insuficientes para comportar o número de alojados. Este quadro contribuía para o surgimento de enfermidades entre os mesmos, algo que não preocupava as empreiteiras, visto que eram facilmente substituíveis.
Porém, se as condições já eram paupérrimas fora dos horários de serviço, são sobre as atividades em canteiro que se avolumam os relatos mais graves. Próximo à entrega das obras, realizada em abril de 1960, trabalhar aos domingos e feriados tornou-se comum. Os turnos chegavam a durar 24h, com curtos intervalos para alimentação. Além do ritmo agressivo, os equipamentos de segurança eram mínimos. O registro de acidentados saltou de 342, em 1957, para mais de 10 mil, em 1959, segundo anotações do antigo hospital IAPI (Ribeiro, 2008, Apud De Gusmão, 2021). Não há, no entanto, registros oficiais de mortes, apesar de ser possível afirmar que elas tenham, sim, acontecido, de acordo com a documentação produzida nos anos subsequentes.
Não bastasse a escalada de exploração física dos empregados na reta final da década de 1950, é importante apontar o elevado grau de complexidade executiva dos projetos os quais precisavam erigir. Como destaca Sérgio Ferro sobre a estruturação da cúpula da câmara dos deputados, um dos mais icônicos prédios do conjunto:
Exigindo muito concreto derramado sobre uma espessa camada de vergalhões em trama estreita. Quase se amarra o ferro, os milhares de nós e pontos apertados machucam, ferem sem dó. Um trabalho colossal, dolorido para levantar uma estrutura estaticamente duvidosa. Ali esbarrão entre desenho e canteiro é frontal. — (2006, p. 310 Apud Silva, 2008, p.7)
Portanto, num contexto em que a força de trabalho se encontrava desguarnecida de itens de proteção e exaurida pelo dia a dia massacrante na futura capital, a escultórica arquitetura de Niemeyer e seu pioneirismo plástico se apresentava enquanto fator dificultador do processo de feitura do edifício, à exemplo da fase de armação citada pelo autor. E essa questão, diga-se, não possui conexão com nenhuma suposta inaptidão por parte dos operários. Em face da tecnologia construtiva disponível, se tratava de um problema produzido no desenho e somente evidenciado na execução, cada vez mais penosa devido aos constantes aviltamentos.
Mais do que a sua dimensão prática (gerar valor a partir de empenho físico, intelectual ou da coadunação de ambos), o trabalho carrega uma intrínseca dimensão política, que, evidentemente, permeia os casos aqui citados e quaisquer outros. No livro “Does Skill Make Us Human? Migrant Workers in 21st-Century Qatar and Beyond”, a pesquisadora Natasha Iskander lança luz sobre as relações de poder entre operários estrangeiros e os seus supervisores dos canteiros de Doha, através de uma investigação centrada no conceito de “Skill” (algo como “qualificação”, em inglês). Subsidiada por uma criteriosa investigação in-loco com interlocutores das duas posições, Iskander elabora acerca de que forma o conceito foi instrumentalizado para justificar e legitimar a lógica de super-aproveitamento das forças produtivas da construção civil local desde o início do milênio.
A despeito de serem, no geral, profissionais com plena capacidade de corresponder às tarefas a eles incumbidas, superando, inclusive, barreiras culturais e linguísticas, o rebaixamento social desses sujeitos ocorre desde o alistamento para ocupar às vagas disponíveis. Muitas vezes chamados de “não qualificados”, “improdutivos”, “de baixa qualidade” ou até como “corpos”, os trabalhadores das frentes mais pesadas de obra são colocados numa categoria tão subalterna que ultrapassa a própria hierarquia do canteiro. São, por consequência, desumanizados nesse processo. Desumanização essa que normaliza o apagamento dos óbitos, a minimização das ocorrências e a negação a assistências de qualquer sorte.
A objetificação do sujeito da ponta de baixo da cadeia e o menosprezo às suas agruras é padrão gritante nas experiências abordadas. Certa vez, quando perguntado pelo cineasta brasileiro Vladimir Carvalho sobre denúncias de uso de força policial desproporcional durante repressão de protestos dos candangos por melhores condições, Lúcio Costa, laureado pelo Plano Piloto de Brasília, respondeu com as palavras: “Do ponto de vista da construção da cidade, isso é apenas um episódio. Não tem a menor importância”. A fala do urbanista está eternizada no documentário “Conterrâneos velhos de guerra”, de 1991.
Em 2022, o Presidente da FIFA, Gianni Infantino, gerou controvérsia ao responder sobre os padrões de trabalho nos preparativos dos jogos, durante conferência de negócios nos Estados Unidos: “Meus pais emigraram da Itália para a Suíça. Não tão longe, mas ainda assim. Quando você dá trabalho a alguém, mesmo em condições difíceis, você lhe dá dignidade e orgulho”. A desimportância atribuída a fatos de absoluta gravidade ajudam a explicar o porquê, mais de meio século depois, o tilintar das ferramentas e o ruído das escavadeiras abafam a dor dos que sofrem diariamente no limite do exercício de suas funções.