Fonte: Geledés
A palavra “autocuidado” tem feito cada vez mais parte do dia a dia de mulheres — sobretudo as negras. Para não adoecer por conta do racismo e de estereótipos naturalizados como “mulheres negras são fortes”, elas entenderam a necessidade de reservar um tempo para o cuidado emocional, físico e mental, principalmente para continuar na militância.
A urgência por essa preservação tem como um dos pontos de partida a violência. Estima-se que 66% de todas as mulheres assassinadas no país sejam negras. Os dados são do Atlas da Violência de 2019, realizado pelo Fórum Brasileiro de Segurança Pública e o Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea).
Ainda de acordo com a pesquisa, a taxa de assassinatos de mulheres negras cresceu quase 30% entre 2007 e 2017, enquanto a de brancas cresceu 4,5%.
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Quando se trata especificamente de feminicídio, os dados também são alarmantes. Segundo o Anuário Brasileiro de Segurança Pública 2019, também realizado pelo Fórum, 61% das vítimas desse tipo de crime são negras, contra 38,5% de brancas.
Cuidado com o corpo tem sido visto como cada vez mais importante, na prática e simbolicamente, em especial entre mulheres negras (Foto: Divulgação/Danny Alves)
— Nós, mulheres negras, temos em geral problemas sociais e ambientais relacionadas diretamente às situações de racismo que reforçam a vulnerabilidade na saúde — destaca Luciene Lacerda, psicóloga e mestre em Saúde Coletiva pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ).
— O ato de tocar o próprio corpo e reconhecer a si mesma, assim como ler, cantar, dançar, mobiliza boas energias para o corpo e para a mente. E fazer isso também de forma coletiva é importante, de modo que se possibilite conversas que tornem menos doloridos os sofrimentos e que tornem mais prazeroso falar sobre alegrias e prazeres. Estamos em tempos tão individuais e agressivos que coletivizar se faz necessário.
“Quando tenho a oportunidade de cuidar de outra mulher, me sinto forte. Fortalecida por resgatar nossa ancestralidade através da nossa identidade”
Andressa Abreu
Uma das fundadoras do Clube das Pretas
. A necessidade de cuidar dessas mulheres que estão em vulnerabilidade social fez com que fossem criadas iniciativas para bem-estar, acolhimento e cuidados específicos. É o caso do Clube das Pretas, a primeira consultoria especializada em cabelos crespos naturais, localizado no Humaitá, Zona Sul do Rio.
Para Renata Varella, de 34 anos, que fundou o Clube junto com Andressa, também de 34, o cuidado com os cabelos é um ato de resgate.
— Quando criamos o Clube, buscamos um lugar para cuidar dos nossos cabelos naturais, mas que também nos ensinasse a cuidar deles em casa. E a nossa ideia nunca foi pensar somente no cabelo. Ali podemos conversar, nos alimentar e trocar experiências pessoais. E acredito que, enquanto mulheres crespas e cacheadas, o ato de assumir nossos fios naturais é um ato de amor, de identidade e de política — comenta Renata.
Corpo Foto: Divulgação/Danny Alves
Com dois anos de atividade, o Clube das Pretas também promove rodas de conversa que abordam temas relacionados à negritude. Além disso, para passar o conhecimento adiante, em fevereiro deste ano elas realizaram um curso que ensinou técnicas para mulheres negras periféricas aprenderem a cuidar de seus cabelos.
— Trabalhamos com três pilares: cuidados com cabelo, capacitação de mulheres e o networking entre elas. Então, passar o que aprendemos para outras mulheres por meio dos cursos e das rodas de conversa que realizamos proporciona trocas bem ricas. Quando tenho a oportunidade de cuidar de outra mulher, me sinto forte. Fortalecida por resgatar nossa ancestralidade através da nossa identidade — diz Andressa Abreu.
Toque com afeto
“Cuidar de mim mesma não é autoindulgência. É autopreservação, um ato de luta política”. Foi o que disse Audre Lorde, escritora negra, lésbica e feminista. Embora pareça ser recente, o conceito de autocuidado foi criado em 1988 com Audre, quando ela citou esta frase no epílogo do livro “A burst of light”.
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Para quem busca carinho, massagem e equilíbrio espiritual, o Ateliê Casa Vênus, que fica na Glória, Zona Sul do Rio, está de portas abertas e mãos preparadas. Criadora do espaço, a terapeuta holística Laura Pitangui, de 33 anos, conta que a Casa tem, antes de tudo, a missão de agregar.
— Nós cuidamos de todas as mulheres, mas priorizamos as mulheres negras, porque estamos em vulnerabilidade social. Nossas questões são mais profundas e a sociedade nos enxerga de outra forma. E é raro um espaço onde nos sentimos à vontade. Então, a Casa Vênus é para isso: acolher — afirma a terapeuta.
Laura, que há quase 15 anos estuda terapias holísticas, consolidou o trabalho na Casa Vênus há um ano. Praticante da yoga desde os 12 anos de idade, ela utiliza seu trabalho também como uma ferramenta de conscientização.
— Desde muito nova, quando eu tocava nas pessoas, elas gostavam e eu entendi que era um dom. Depois disso, fiz cursos no Brasil e na Europa. Mas a minha missão vai além da yoga ou do simples toque. Procuro despertar a consciência das pessoas durante todo o tratamento, não só por meio da massagem, mas pela fala, pelo carinho e pelo respeito. E esse processo é bom para mim também. É um privilégio poder cuidar de mulheres e me dá alegria, eu aprendo com todas. Cada corpo tem uma história e uma energia diferente e o resultado é sempre produtivo — diz.
A historiadora e professora da UFRJ Giovana Xavier, de 40 anos, também é uma incentivadora da prática do autocuidado. Por meio de publicações em suas redes sociais, ela encoraja mulheres a reservarem um tempo para si e adotarem práticas que tragam satisfação.
— Costumo usar uma frase da Laura Pitangui em que ela diz: “É você que tem o poder de decidir para onde a sua energia vai vibrar”. Então, penso que autocuidado é buscar ferramentas para estar bem consigo mesma. No meu caso, procuro alinhar corpo, mente e espírito. E principalmente nós, mulheres negras, que somos colocadas na posição de cuidar e atender as demandas dos outros. Precisamos cuidar de nós e isso não pode ser confundido com egoísmo. É algo necessário, até porque se não estivermos bem conosco não estamos preparadas para promover mudanças no mundo externo — ressalta ela.