por Vanderlei Campos, na Carta Capital
O conflito entre os interesses das empresas de telecomunicação e aqueles dos seus usuários acirrou-se nos últimos anos e só tende a aumentar, sugere o resultado da consulta pública realizada pelo Ministério das Comunicações para a penúltima revisão quinquenal dos contratos de concessão de telefonia comum renovados em 2005. O objetivo é fixar novas condições, metas de universalização e de qualidade para as teles.
Encerrada na sexta-feira 15, a coleta de opiniões mostrou uma polarização entre as operadoras, interessadas no fim das regras da concessão de telefonia fixa, e as associações e grupos de provedores e usuários, defensores da busca de novos mecanismos de competição e de inclusão. O objetivo da iniciativa é adequar a Lei Geral de Telecomunicações, de 1997, ao novo contexto marcado pela importância da banda larga como eixo dos negócios do setor e parte também do direito fundamental à comunicação.
Alguns exemplos mostram as diferenças de perspectiva entre empresas e usuários. No processo de consulta pública, a Oi argumentou que, se a regulamentação estender aos serviços convergentes as exigências da concessão, incluídas todas as obrigações adjacentes ao regime público, como a universalização e a reversibilidade, inviabilizará a oferta em regime privado de banda larga e de tevê. Caso mantenha o escopo restrito ao Serviço Telefônico Fixo Comutado (STFC), nome do sistema público convencional de comunicação de voz, “tais contratos estariam integralmente esvaziados, o que inviabilizaria a continuidade das concessões”.
Para a Telefônica Vivo, a manutenção dos contratos até o fim do prazo, 2025, sem possibilidade de renovação, ofereceria maior segurança jurídica e regulatória. A empresa não quer, entretanto, a continuidade integral das condições pactuadas e reivindica mudanças nas regras de universalização, metas de qualidade e aplicação de multas, por provocarem “uma assimetria injustificável com os competidores”.
Flávia Lefèvre Guimarães, advogada da Proteste Associação Brasileira de Defesa do Consumidor e indicada pela segunda vez ao Conselho Consultivo da Anatel, calcula o valor da rede de acesso e transporte das concessionárias em cerca de 70 bilhões de reais, em valores de 2013. A especialista defende a combinação de modelos de concessões, com metas de universalização e subsídios públicos, e de autorizações nos mercados mais competitivos, tudo em regime público. “A Constituição define telecomunicações como serviço público”, argumenta.
O Intervozes Coletivo Brasil de Comunicação Social, entidade voltada para a “defesa do direito humano à comunicação”, e o Instituto Brasileiro de Defesa do Consumidor, o Idec, propõem uma “segmentação funcional”, em que os grandes troncos, os circuitos nacionais e a estrutura de tráfego de atacado sejam objetos de concessão e regime público, e adote-se o regime privado no acesso local, com obrigações como a oferta de um plano básico de banda larga aos clientes finais dos provedores ligados a essa infraestrutura. Idec, Intervozes e outras entidades integram o movimento “Banda Larga é Direito Seu”.
Desde 2005 as concessionárias Oi e Telefônica Vivo perderam cerca de 13 milhões de assinantes de telefonia fixa para autorizadas como Net e GVT. Em contrapartida, detêm 54% dos acessos de banda larga fixa, mercado em grande parte desenvolvido sobre a malha legada das empresas privatizadas, e 15% de tevê por assinatura.
Dos investimentos das operadoras em 2014, calculados em 31,6 bilhões de reais pela consultoria Teleco, 59% foram destinados a “serviços fixos”, ou seja, tudo aquilo que trafega por fios e fibras. Nesse trânsito, a telefonia fixa hoje tem um peso técnico, comercial e socioeconômico decrescente e ao seu declínio corresponde a ascensão da banda larga.
Uma questão considerada decisiva para a Telefônica Vivo é a “reversibilidade de bens”. A operadora quer resolver suas pendências na atual revisão quinquenal. “Deixar os ajustes para a próxima revisão tornará os contratos vigentes insustentáveis, culminará em uma rescisão por parte das concessionárias e a União terá de se encarregar do funcionamento de um serviço sabidamente deficitário”, afirma Amos Genish, diretor-presidente da Telefônica Vivo.
A reversibilidade é o mecanismo que assegura o retorno ao poder concedente dos bens essenciais à prestação do serviço, no caso de descumprimento ou ao término da concessão. A evolução tecnológica da plataforma de telefonia fixa e o tráfego nas mesmas redes tanto do serviço sob concessão quanto daqueles operados em regime privado dificultam o acompanhamento do atendimento das exigências. O caso da Telefônica Vivo ilustra a situação das outras operadoras.
A empresa planeja investir 8,5 bilhões de reais em acesso residencial com fibra com foco nos negócios de vídeo e internet, mas o STFC está incluído nos pacotes dentro de sua área de concessão. “Para nós, a fibra não é um bem reversível. Não vou parar de investir, mas é injusto com as operadoras”, reclama Genish. “Não consideramos razoável que, após colher os resultados de políticas públicas como a concessão e as altas tarifas de assinatura básica, se passe tudo ao regime privado com uma contrapartida qualquer”, contrapõe Veridiana Alimonti, advogada e coordenadora-executiva do Intervozes.
Em uma auditoria do Tribunal de Contas da União sobre o controle dos bens reversíveis pela Anatel realizada em dezembro, estimou-se que em 2013 o seu valor total seria de 105 bilhões de reais, 88% sob administração da Oi e da Telefônica Vivo. Os investimentos não amortizados, passíveis de indenização em uma transferência de posse, seriam de 17,69 bilhões. O próprio relatório aponta, entretanto, incertezas quanto aos números, em um tom bastante crítico à atuação da agência.
“A contribuição das operadoras é baseada no pragmatismo, na atratividade para os investimentos”, enfatiza Eduardo Levy, diretor-executivo do Sindicato Nacional das Empresas de Telefonia e de Serviço Móvel Celular e Pessoal, o SindiTelebrasil. O regime privado, além de demonstrar capacidade de massificação, “não suprime ao regulador a possibilidade de incluir mecanismos de universalização nas autorizações, a exemplo do que aconteceu com as licenças para 4G”.
João Moura, presidente-executivo da Telcomp, entidade representativa dos provedores locais, enfatiza a necessidade de regular o acesso aos circuitos de atacado. Há 5.862 provedores licenciados para prestar serviços locais, com acesso aos clientes por cabos ou rádio de médio alcance, mas a infraestrutura é dominada pelas grandes operadoras, a maioria com operações no varejo. “Transferir toda essa infraestrutura dos dutos de dados ao regime público não parece factível. O que defendemos é uma regulação que coíba práticas anticompetitivas e garanta o compartilhamento com condições e preços justos.”
No governo, há setores favoráveis à substituição de termos da concessão, entre eles a reversibilidade, por compromissos de investimentos. “Essa revisão da regulação vem em boa hora e tem possibilidade de alavancar vários investimentos em 2016”, sinalizou Nelson Barbosa, atual ministro da Fazenda, na abertura da consulta pública, em novembro.
Rafael Zanatta, advogado do Idec e integrante do Grupo de Trabalho em Telecomunicações da Secretaria Nacional do Consumidor, o Senacon, do Ministério da Justiça, teme o açodamento na “avaliação da complexidade dos instrumentos regulatórios que o Estado pode utilizar e das questões estratégicas ligadas ao controle da infraestrutura de internet em banda larga, que podem ficar nas mãos de poucos grupos econômicos, gerando controle de mercado e aumento de preços”. O Idec propõe uma segunda fase da consulta pública em 2016, a partir de uma proposta de reforma da Lei Geral de Telecomunicações por parte do governo.